Lacan definirá o desejo como “um desejo evanescente, cujo único objeto e única satisfação é ser reconhecido pelo outro. Sem nenhuma substância, o que o dominaria, o enquadraria, o habitaria, seria o desejo de reconhecimento”. (Miller, 1999, p. 40)
A Casa Netflix, Hogar 2020
Gosto muito de filmes, e sobretudo de películas francesas, turcas, espanholas e outras mais. Penso que estes filmes tem uma capacidade de mostrar o Real com mais vivacidade, como mais clareza, sem tantos filtros, que acabam nos impedindo de enxergar o que precisamos.
Aqui eu vou emprestar um olhar psicanalítico para falarmos brevemente desta película. Não me interessa perder tempo em falar de enredos, atuações e resenhas. Bora nos ater somente aos pontos necessários.
Precisamos localizar o ponto de corte em que o personagem principal após ser frustrado (descapitalizado no seu desejo) – logo falaremos disso -, faz o seu ritual de passagem elaborando em si um projeto de existência que se tornará a concretização do seu Nirvana (“extinção” no sentido de “cessação do sofrimento”). O personagem principal então afirma-o: “VOU AGARRAR A VIDA, A MINHA VIDA SEM PEDIR PERMISSÃO E NEM DESCULPAS”.
Ele fora um publicitário famoso, família de classe média-alta, já na casa dos 40 e poucos anos. Agora tido como velho e ultrapassado. Tudo mudou. Seu filho já tem outro vocábulário, as agências de publicidade querem pessoas jovens. Ou seja: ele não consegue recolocação no mercado. Então perde tudo – a renda, a casa boa, etc., a vida que dava a ele o seu sentimento de pertença.
Jaques Lacan vai nos falar a respeito desta subjetiva do desejo enquanto falta-a-ser. E esse conceito nos ajuda a pensar sobre este filme a partir desta brilhante personagem.
1. Numa sociedade líquida onde tudo é perene: seu corpo, seu amor, sua renda, seu trabalho, o Estado, onde se percebe esse desmantelar de “cima pra baixo”: se não tenho, se não me dão oportunidades, se não me recoloco, logo não posso pagar a casa em que moro, meus carros, meus funcionários. Enfim, não se consegue pagar a vida que na verdade é a vida que acho que mereço e nenhum outro merece-a no meu lugar. Percebe isso?
2. Nos faz pensar sobre quando se perde, “o que é Adaptação à nova vida”, e “o que é Desistência de seus sonhos”. Note que apenas uma linha corta o sentido disso.
3. Poderia afirmar que muito do que se faz aponta para estes correspondentes do desejo de ser-ter. Se o Inconsciente é estruturado como uma linguagem e Lacan o revela com uma Gramática do discurso, neste sentido, essas formações do inconsciente desta personagem podem ser um cadinho mapeadas pelos seus dizeres. Ou seja: as escolhas dele vão dizendo o que ele quer. Sim: é onde está ancorado o desejo dele. A partir de uma falta-a-ser ele vai se revelando sem dó-nem-piedade.
4. “A lógica do condomínio”, de Christian Ingo Lenz Dunker nos revelou bem esses processos que tem em si a possibilidade de se tornar um geradora de violência reversa. Por que ele merece e eu não? O que grita no inconsciente dos excluídos, dos fora de moda, dos não atualizados, dos deslocados socialmente, dos bulynados, dos sem-margem, dos órfãos de uma sociedade impiedosa e capitalista é: Violências simbólicas de todos os tipos. O personagem está nos dizendo: o que fazer depois de nos dizer: Lamento!?
5. Por fim, ele, tomado do sintoma que não sabe nomear (angústia da falta), ele percebe o que o trava – A APATIA – que é a contratransferência dele neste gozo. Portanto, ele transforma o “lamento” dos outros sobre ele, o dó ofertado a ele, e resolve pegar de volta a sua vida e vivê-la, pois ninguém a merece mais do que ele. Então, ele mata o cachorro do jardineiro que latia fazendo barulhos na sua casa, mata o jardineiro, mata o homem que agora habita na sua casa e que tem a família que ele almeja. A filha é uma criança magra e bailarina. Contrário de seu filho obeso e que sofre Bullying.
Gente com esse perfil – com um pé fincado na psicopatia – beira ao perverso que é àquele que não faz nem mantém relação ou vínculo social. Parece não existir emoção nenhuma ali. Exato: Não existe – somente a conveniência do desejo. O seu sentido de pertença está aí.
São mentes brilhantes. São capazes de tudo, tudo para dar vazão ao seu desejo. Não importa o como nem as consequências. Não existe parâmetros para eles.
Eles terão a sua vida a qualquer preço sem pedir permissão ou desculpas.
Conhece gente assim?
** Deixo aqui uma bibliografia de apoio para àqueles que querem avançar:
- Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan, Escritos (pp. 807- 842). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960);
2. Lacan, J. (1999).O seminário: livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em1957-58);
3. Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar;
4. Miller, J-A. (1999). O avesso de Freud. In J-A Miller, Lacan elucidado: palestras no Brasil (pp. 389-407). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar;